sexta-feira, 9 de março de 2012

GALILEU

“Virgem com o Menino e São João Batista Criança” de Sandro Botticelli e ateliê, têmpera sobre a madeira, 1490-1500 in MASP – Museu de Arte de São Paulo. Fotografia MASP.

Giambattista Ferrari recebeu de seus pais o nome de um santo católico, João Batista. Ele e sua esposa, Anna Ugolini, deram a seus filhos Maria Teresa e Marco Giovanni nomes católicos, Maria, considerada como a mãe de Jesus, e Marco, outro santo, autor do evangelho de São Marcos. Pode-se afirmar com isso que eles eram católicos? Talvez. Porém, pode ser que Marco, Giovanni, Maria e Teresa também fossem nomes de antepassados, o que significaria aí a continuação da família através desses nomes. Por outro lado, em uma sociedade profundamente dominada pelo catolicismo, onde a Igreja era não só um poder espiritual, mas um poder governante que interferia em tudo, ter um nome católico asseguraria, de certo modo, uma inserção mais fácil ali. Ora, esse pelo menos parece ter sido o pensamento de Giambattista Ferrari. Com seu filho Marco Giovanni isso irá começar a mudar. Sobre o poder da Igreja Católica e das religiões em geral, há uma reflexão magnífica do gigante alemão Bertolt Brecht em sua peça de teatro chamada “Vida de Galileu”, escrita entre 1938 e 1939. Em uma Itália pouco anterior a Giambattista, Galileu, após ser interrogado pelo tribunal da Santa Inquisição, recebe a visita de um personagem chamado “o pequeno monge”:
 
“O Pequeno Monge – Mas quero lembrar outras razões. O senhor permita que eu lhe fale de mim. Nasci no campo, sou filho de camponeses. São gente simples. Sabem tudo sobre a oliveira, mas pouco além disso. Observando as fases de Vênus, vejo os meus pais diante de mim, sentados diante do fogão, com a minha irmã, comendo o seu queijo. Acima deles vejo o teto, escurecido pela fumaça de muitos séculos, e vejo bem as suas mãos velhas e deformadas, segurando a colher pequena. A vida deles não é boa, mas até a sua desgraça manifesta uma certa ordem. São os vários ciclos, desde o dia de lavar o chão, até as estações no olival, até o pagamento dos impostos. Há regularidade nos desastres que eles sofrem. As costas de meu pai vergam, mas não é de uma vez, é um pouco mais em cada primavera, trabalhando nas oliveiras; e os partos, é a mesma coisa, vinham regularmente, até deixar a minha mãe acabada. Para subir por esses caminhos desgraçados, arrastando um cesto e pingando suor, para parir filhos os filhos, e até para comer, é preciso ter força, e essa força de onde é que eles tiram, se não do sentimento da constância e a necessidade, que lhes vem olhando os campos, olhando as árvores, que reverdecem todos os anos, vendo a igreja pequena, ouvindo a Bíblia aos domingos. Eles estão seguros – foram ensinados assim – de que o olho de Deus está posto neles, atento, quase ansioso, de que o espetáculo do mundo foi construído em torno deles, para que eles, os atores, pudessem desempenhar os seus papéis grandes ou pequenos. Que diria a minha gente se ouvisse de mim que moram num pedaço pequeno de rocha que gira ininterruptamente no espaço vazio, à volta de outra estrela, um pedaço entre muitos, sem maior expressão? Para que tanta paciência e resignação diante da miséria? Elas não ficariam sem cabimento? Qual é o cabimento da Sagrada Escritura que explicou tudo e que disse que tudo é necessário, o suor, a paciência, a fome, a submissão, se ela agora está toda errada? Não, eu vejo os olhos deles ficarem ariscos, vejo como descansam a colher, vejo como eles se sentem traídos e esbulhados. Então o olho não está posto em nós, é o que pensam. Nós é que precisamos cuidar de nós mesmos, sem instrução, velhos e acabados como estamos? Nenhum papel nos foi destinado, afora este papel terreno e lamentável, numa estrela minúscula, inteiramente dependente, que não tem nada girando à sua própria volta? Não há sentido na nossa miséria; a fome não é prova de fortaleza, é apenas não ter comido; esforço é vergar as costas e arrastar, não é mérito. O senhor compreende agora a verdadeira misericórdia maternal, a grande bondade da alma que eu vejo no Decreto da Santa Congregação.

 
Galileu – Bondade da alma! Provavelmente, o que o senhor quer dizer é só que não sobrou nada, que o vinho foi bebido, que a boca deles está seca, de modo que o melhor é beijar a batina! Mas por que não há nada? Por que é que só é ordem, neste país, a ordem da gaveta vazia? E necessidade só existe a de se matar no trabalho? Em meio das vinhas carregadas, ao pé dos trigais! Seus camponeses pagam a guerra que o Vigário do suave Filho de Deus provoca na Espanha e na Alemanha. Por que ele põe a Terra no centro do universo? Para que o trono de Pedro possa ficar no centro da Terra! É isso que importa. O senhor tem razão, não são os planetas que importam, são os camponeses. E o senhor, não me venha com a beleza dos fenômenos que o tempo redourou! O senhor sabe como a ostra margaritífera produz sua pérola? É uma doença de vida ou morte. Ela envolve um corpo estranho, intolerável para ela, um grão de areia, por exemplo, numa bola de gosma. Ela quase morre no processo. A pérola que vá para o diabo. Eu prefiro a ostra com saúde. A miséria não é condição das virtudes, meu amigo. Se a sua gente fosse abastada e feliz, aprenderia as virtudes da abastança e da felicidade. Hoje, a virtude dos exaustos nasce da terra exausta, e eu abomino isso. Meu caro, as minhas novas bombas d’água fazem mais milagre do que a sua ridícula trabalheira sobre-humana. – “Crescei e multiplicai-vos”, pois os campos são estéreis e a guerra vos dizima. O senhor quer que eu minta à sua gente?”

 
Fonte: Bertolt Brecht em Vida de Galileu in Teatro Completo 6. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, pp. 119-120.

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