quinta-feira, 8 de março de 2012

GIAMBATTISTA FERRARI E ANNA UGOLINI

Pintura de Pompeia, casa dita de Terêncio Neo. Retrato de um casal, anterior a 79 a.C. Fonte: Museu Arqueológico de Nápoles.

No registro de batismo de Maria Teresa Ferrari, aparecem pela primeira e única vez neste livro de batismo, os nomes dos pais de Maria Teresa e de Marco Giovanni Ferrari: Giambattista Ferrari e Anna Ugolini. Não há mais nada. Nenhuma linha a mais, nada sobre a data e o lugar de nascimento deles, sequer se a casa de Cervara já era a casa deles ou não, e se Maria Teresa e Marco foram seus únicos filhos – algo bastante improvável. De qualquer modo, a partir daí, deste único registro, pode-se concluir que os Ferrari que vieram depois, trazem não só as marcas desse primeiro Ferrari conhecido, Giambattista, aquele que fez passar o nome Ferrari adiante, como também desta Anna Ugolini – em outras palavras, somos, sem saber, filhos dessa mistura, de um Ferrari com uma Ugolini. Há Ugolini em nós. Difícil e quase impossível identificar que marcas seriam essas. Na névoa, tateemos. Ugolini, ao contrário de Ferrari, não identifica uma profissão, um ofício, uma prática. É um nome derivado de outro nome, Ugo, um nome alemão. Ora, teria Anna Ugolini origem alemã?  O que sabemos é que um dia Giambattista encontrou Anna. Um dia eles se casaram. Um dia eles tiveram primeiro Maria Teresa e, dois anos depois, Marco Giovanni. 

O grande historiador francês Paul Veyne, quando recebeu a tarefa de abrir a monumental História da Vida Privada, série de cinco livros, com uma análise do Império Romano, tinha uma pintura nas mãos. Uma pintura encontrada na parede da casa de um antigo morador de Pompeia. E aí, ele diz assim:

“Com eles o gelo logo se rompe: para conhecê-los basta fitá-los nos olhos; eles mesmos nos olham assim. Em todas as suas épocas a arte do retrato não comporta semelhante troca de olhares. Este homem e essa mulher não são objetos, pois nos veem; porém, nada fazem para nos provocar, seduzir, convencer ou entremostrar alguma interioridade que não mais ousaríamos julgar. Percebem menos nossa presença do que se oferecem tranquilamente aos olhos do mundo: nossa presença é natural, e eles mesmos se acham naturais; são o que nós somos, e os olhares se trocam com igualdade por um valor comum (...). O pai de família e sua esposa não fazem pose nem mímica; a roupa de ambos não ostenta sinais sociais nem símbolos políticos – a roupa não faz a pessoa; o cenário é vazio: diante desse fundo neutro, o indivíduo é ele mesmo e seria o mesmo em qualquer lugar. Verdade, universalidade, humanidade. A mulher concentrou a elegância no penteado e não usa joias (...); esse homem e essa mulher eram ricos o bastante para mandar pintar seu retrato. Também são indivíduos apenas na aparência; seu retrato, que poderíamos tomar por uma foto instantânea, como que por acaso lhes fixou a identidade na faixa dos quarenta anos, em que se acabou de crescer e ainda não se começou a envelhecer (...). O marido e a mulher detêm os atributos menos contestáveis e mais pessoais de sua superioridade social; não a bolsa ou a espada, atributos da riqueza e do poder, mas um livro, tabuinhas de escrever e um estilete. Esse ideal de cultura é natural: o livro e o estilete visivelmente são para eles instrumentos familiares que o casal não ostenta. Coisa bastante rara na arte antiga, que não aprecia os gestos familiares, o homem expectante apoia o queixo no livro (em forma de rolo), e a mulher pensativa leva o estilete aos lábios: procura um verso, pois a poesia também é uma arte das damas. Um Michelangelo há de gostar dos gestos “autísticos” (seu Moisés distraidamente acaricia a própria barba): revelam nele a sombra de uma dúvida ou de um sonho.”
Fonte: Paul Veyne em O Império Romano in História da Vida Privada v. 1. São Paulo: Cia. das Letras, 2009, pp. 19-20.

Um dia, quem sabe, qualquer dia, saberemos mais de Giambattista Ferrari e de Anna Ugolini. Hoje, fiquemos com o retrato de seus nomes. Não é pouco.

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