segunda-feira, 5 de março de 2012

VIAGEM À CERVARA


1a. parte do vídeo - pode ser assistido em tamanho e cores melhores no endereço http://www.youtube.com/watch?v=SuheRdHvwpk
2a. parte do vídeo - pode ser assistido em tamanho e cores melhores no endereço http://www.youtube.com/watch?v=pkEHpDAbLpM


Os queridos primos Marino e Ester nunca tinham estado lá. Descobriram sua existência pouco antes da nossa chegada à Itália em 1994. E nos legaram este presente maravilhoso, a ida até a casa de Cervara, a casa onde Marco Giovanni Ferrari viveu com sua esposa Maria Flandi, com seus filhos e com sua irmã, Maria Teresa. Graças ao padre Sérgio, do Santuário da cidade de Verucchia, vizinha à Rosola, que indicou aos primos a única pessoa de região que sabia onde se localizava a casa de Cervara: Anselmo Biagini. Então, a primeira parada para Cervara, a casa de Anselmo, a casa Mazera em Rosola. De lá, este guia inesquecível, a própria alma do contadino, do camponês italiano, um homem que, durante a ocupação nazista na 2ª. Guerra, escondeu os sinos da Igreja para que eles não fossem derretidos pelos fascistas. Só depois da guerra terminada é que os sinos foram levados de volta ao seu lugar. Anselmo com seu dialeto difícil nos levou pela mão até Cervara. Fomos de carro até um trecho e depois, só à pé. Nas palavras epifânicas de minha filha Andréa, então com oito anos de idade, lá seguimos pelo “bosque lamento” em uma região de indescritível beleza, um pedaço de montanha à beira do rio Panaro. Um subida árdua, difícil, ainda mais para Belkiss, grávida de quatro meses do Bernardo, e que não podia fazer esforço físico demasiado devido a algumas complicações da gravidez. A filmagem foi toda extremamente inviável, pois a câmara usada que tínhamos comprado no Brasil demonstrou ser uma espécie de bomba-relógio. Ela travava, as baterias duravam cinco minutos e paravam de funcionar, as imagens captadas ora eram boas, ora estavam misturadas com zumbidos estranhos, tremores insanos, enfim, um drama. Porém, eis aqui o único documento filmado desta casa. Quando nos aproximamos do alto da montanha, lá estava ela, ruínas lindas, ruínas silenciosas, ruínas falantes, ruínas de um outro tempo, de outras vidas, mas agora ruínas do nosso tempo, das nossas vidas – ruínas-espelhos. Como Colombo, havíamos feito uma travessia. Lamentavelmente, foi a última vez que Marino e Ester viram Cervara. Um tempo depois eles se despediram de todos nós. Outro tempo depois e soubemos que a casa não existia mais. Tinha sido posta abaixo, destruída para a construção de não sei o quê sobre ela. Não interessa. A casa de Cervara está aqui agora. Graças aos primos Marino e Ester, in memoriam. Graças ao padre Sérgio e a Anselmo. Graças à pesquisa incansável de Ester e à aula admirável que ela dá neste vídeo sobre arquitetura e história, generosa senhora. Graças ao humor inesquecível de Marino. Graças à Belkiss, que quis por que quis comprar esta câmara e com sua graça tornou esta viagem um marco em nossas vidas. Graças à querida Andréa que nos acompanhou em todos esses passos. Graças a este filmador-amador, arqueólogo também de imagens e à vaga ideia em 1994 de escrever alguma coisa sobre a família. Graças a meu filho Ricardo, inquieto em saber mais sobre essa história. Graças ao meu filho Bernardo que ficou ontem dezesseis horas lutando com um computador à lenha, com programas que não funcionavam como deveriam e, finalmente, à meia-noite, conseguiu terminar a edição deste vídeo precioso. Foi dele também a ideia de armazenar o vídeo no youtube.
 
Em um dos mais belos textos da Psicanálise, chamado A Transitoriedade, Freud relata um passeio que fez por uma rica paisagem, num dia de verão, em companhia de um amigo taciturno, um poeta jovem já famoso na época, e que admirava a beleza do cenário que os rodeava, porém não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Então, Freud responde:

 
“Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso. Tampouco posso compreender por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam ser depreciadas por sua limitação no tempo. Talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos se reduzam a pó, ou que nos suceda uma raça de homens que não mais entenda as obras de nossos poetas e pensadores, ou que sobrevenha uma era geológica em que os seres vivos deixem de existir sobre a terra; mas se o valor de tudo quanto é belo e perfeito é determinado somente por seu significado para a nossa vida emocional, não precisa sobreviver a ela, e portanto independe da duração absoluta.”
Sigmund Freud in A Transitoriedade (1916) in Obras Completas, volume 12. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, pp. 149.

 
Cervara floresce agora para várias noites. Nesta montanha, neste rio, neste céu, nossa montanha, nosso rio, nosso céu. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário